sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Sobre o Livro do Desassossego


Esse livro, que sempre me abre a mente de forma bruta, como uma escavadeira que pela força penetra o asfalto, que jamais será o mesmo. E a alma que o escreveu, tão perturbada e infeliz, com a qual me identifico tanto; e teço dias num diálogo solitário, preencho vazios com conhecimento e horas com reflexão. Aprendo a viver com a plena consciência do existir muitas vezes lancinante. E a grandeza das estrelas, lá do alto nos ignorando, não me chama mais atenção do que a pequenez do cotidiano ou a banalidade da vida urbana. Aprendo a lidar comigo e apenas, na solidão do meu quarto simples ou na confusão de uma casa cheia.

Alice


A menina chorou, pobre Alice
Ninguém para confortá-la, dizer que está tudo bem ou segurar suas mãos.
Alice, aquela que chora só
Alice, aquela que se perdeu
Alice que se compactuou com forças das trevas
Aquela bruxa da Alice, deveria ser queimada
Alice, que intoxicava qualquer um que ousasse respirar o mesmo ar que ela
Pobre Alice, que já havia reservado seu tour nas trevas
Alice, a abandonada
Que suspira e chora no breu
Que se esconde nas curvas do caminho
Que tão nova possui a amargura de uma velha desgostosa
Alice, a não fértil, a infeliz
Alice, a sem vontade, a cruel, monstro de menina
Alice que se esconde no assovio do vento e se camufla entre pichações e anúncios mil
Alice que não se enquadra, que é um aborto andante, que foi expulsa do inferno
Alice, que perambula e fede, que anda em trapos, que chora ácido, se é que chora
Alice que não é gente, que não é bicho, que nem existe e é odiada
Alice que fala alto, não é ouvida, então não diz nada
Alice que se recua e se recusa quando é acuada
Alice, que não entendia, que não fez nada, pobre coitada
Alice que apanhou, que foi cuspida, pediu guarita e lhe foi negada
Alice se recolhia e se cobria, não funcionava
Alice de forma pequena, de fama gigante, de pés descalços, de modo errante
Alice que não tem sorte, pediu a morte e até isso lhe foi negado
Alice que ao invés da língua dizem ter uma navalha
Alice que merece açoite, merece estupro de cães com sarna
Alice que mora em casa, mas não tem lar, que tem parentes e não tem família
Alice que não se mete, mas não repete o eco das vozes
Alice que não tem sorte e foi entregue ao próprio azar
Alice tava cansada de escarrada pra cara afora
Alice, que agora segue, que não sugere, que só repete, foi perdoada
Alice, que agora é limpa, em corpo e alma, e há quem diga que foi curada
Alice não mais duvida, não mais questiona, fica na sua, Alice é santa!
Alice que se calou e se tornou parte daquilo que repudia
Alice quis ser aceita, quis ser direita, quis ser eleita uma cidadã
Alice, que agora andava, cabeça erguida e até sorria pela manhã
Sua mãe, que orgulho sentia!, e o povo aclama por seu afã
Alice, a bela jovem, agora sim era amargurada, era infeliz, chorava ácido, se é que chorava
Alice que se mostrava, mas se escondia num mundo plástico
Alice, que não mais se escondia nas curvas do vento, mas nas curvas do seu corpo
Alice que socorria, a mão estendia a quem precisasse
Alice era louvada, salvava almas, menos a sua, foi acuada.